QUARENTENA OU SESSENTENA?

Essa Crônica concorreu ao concurso do Clube dos Autores. Não levou! No entanto,compartilho, pois me diverti ao escrevê-la.

Olhei para os lados e nada vi, apenas o tempo que pediu férias. Meu tempo pediu férias, imagine que absurdo. Ele disse: faça o que quiser, como quiser, na hora que lhe for conveniente e na minha agenda que nada cabia, adentrou minha família, até a gata Russa que de fato tem aproveitado quarentena. Ela abre os olhos lentamente, se alonga com primor e ulalá, volta a dormir.
E nós, olhamos um ao outro, somos em três, aspiramos todo o apartamento, preparamos pratos esteticamente elaborados, gargalhamos de coisas que antes do tempo entrar de férias, nem percebíamos. Seguimos protocolos de entrada e saída. Tira calçados na porta grita um, deixa as roupas no saco plástico ao lado da máquina de lavar, olha o roupão pendurado no varal grita o terceiro. Sempre surgem apoiadores parecendo vassouras automáticas, ágeis que só, borrifando álcool em toda área de forma que o COVID-19 se entrou, não permaneça, fique tonto e se lance no vazio do inexistir. Afinal, inimigo ele é, isso é certo.
Em outros tantos momentos dançamos, caminhamos, saltitamos no espaço de cento e dez metros quadrados e brincamos de pique. Essa parte é perversa, pois o tal do joelho que me sustenta, trava nas horas que mais preciso dele. As juntas de uma quase sessentona arranham, gritam por piedade e eu a ignoro, mas não à dor lancinante. A paisagem do calçadão, do mar, dos navios também parados, o reduzido volume de carros, denuncia que podemos agora cumprir nossas promessas não cumpridas pela presença de uma abarrotada agenda, muitas vezes sem sentido ou significado.
Pelas telas do notebook, celular e tablet acompanhamos o cenário externo, tão diferente desse que estamos vivendo. Lamentos, sobrecarga, fadiga, o mundo e suas demandas a nos engolir e agora nos expele em uma golfada longínqua e nós ficamos aqui estupefatos, a perceber o que nos rodeia, o canto do colibri, a brisa, o cheiro do mar, as vozes dos amantes adensadas pela emoção do encontro, a preguiça, a leitura preguiçosa em uma tarde de domingo que se demora a avançar, deixando para trás a neurose da segunda pela manhã de tantos seres humanos, não para nós, caseiros que somos, trabalhadores que gostamos do nosso ofício e gratos pela vida que decidiu passar mais lentamente em pleno século XXI e somente a tecnologia nos permite ir de lá para cá, ver as pessoas, afagar amizades, pedir alimentos, medicamentos, ensinemos nossos alunos, escutemos nossos clientes e enfim nos reportemos a espaços como se holografia fossemos. Estamos cá, lá em nenhum lugar porque o tempo se foi de férias e sabe Deus quando retornará!

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