Um dia nublado, o vento gélido nos convida a recolher o corpo em casa. Diferente do pensamento que vasculha as teias da memória, trazendo momentos significativos onde a borboleta que habita na nossa alma de novo e de novo metamorfoseia.
Me transportei para Ilhéus, três anos de idade, no dia em que meus pais no quarto, antes de dormir, convenceram-me que faria um bem enorme se jogasse minha chupeta, a um bicho chamado jacaré. De muito boa vontade lancei a chupeta ao pobre animal. Final de ciclo da vida com chupeta. Mas as marcas foram preservadas por meio da arcada pronunciada por muitas décadas. Assim ocorre com toda sorte e qualidade de mudanças vividas.
1968, ônibus da São Geraldo, sucos de laranja, tangerina e uva em plásticos no formato das frutas. Eu saboreando uma dessas, sentada no degrau ao lado do motorista em intermináveis conversas recheadas de perguntas sobre a vida dele, a estrada, os passageiros e sobre o atrativo sanduíche na parada de São Mateus, derramando queijo por todos os lados do pão na chapa chamado queijo quente, o qual não existia na minha realidade. De Ilhéus para o Rio de Janeiro, uma nova etapa da minha vida: Olinda – Nilópolis-Rio de Janeiro quando a Beija-flor ainda engatinhava.
Ditadura, Diretas Já…1972…Paz e Amor. Uma paz que se distanciou dos meus dias. Deixei de ter o convívio em família, mudando de região e cidade. Conheci uma vida repleta de primos e primas, a beira da maré, manguezal, caranguejos, canoas, machucados e uma saudade doída, cortante que minha tão pouca idade e tamanho não sabiam dimensionar ou gerenciar.
15 anos, fuga de casa por um dia, com retorno a noite. Vestido branco com fitilho azul, tamancos brancos e altos. Muitas pessoas, chocolate quente, bolo de coco, pipocas, sanduichinhos e sacanagem (azeitonas, tomates, pimentões queijos e salsichas picados e espetados em palitos). Minha avó paterna e tias fizeram tudo de forma simples, mas com muito esmero. Não deixaram passar em branco a comemoração de uma vida. Profunda gratidão.
Não sabia ainda que retornaria ao Rio de Janeiro para dividir teto com minha mãe-drasta. Tão jovem e com tamanha responsabilidade e valentia.
Mudanças radicais são constantes na minha vida e as recebo de bom grado sem espernear, reclamar ou resistir. Quando elas surgem no horizonte as acolho e vagarosamente saboreio.
Dizer que não tenho medo, que meu estomago não resfria e que minhas pernas não tremem, seria falácia. Sinto tudo e mais um pouco. Deixo vir, avanço sem olhar para trás e dou o passo necessário para seguir. Marcas leves, profundas, cicatrizes me levam para outro estágio da vida. Mais maduro, seguro, puro ou não.
Amores, dissabores, horrores todos nós vivemos ou assistimos. No entanto, o fruto dessas experiências nos faz pensar, agir e sentir diferentemente a cada período das nossas vidas. Diante desse fato podemos adotar posicionamentos distintos: de problematização ou resolução; de dor ou alegria; de fuga ou enfrentamento; angústia ou deleite.
Mudanças são importantes, necessárias e inerentes a vida de um ser humano. Quem resiste sofre. Quem acolhe vive os ciclos encerrando, outros debutando, os cabelos platinando; as marcas faciais chegando, as articulações enrijecendo, o ritmo e movimentos lentificando, o cérebro esquecendo, as lembranças se apresentando com mais constância. A vida é um conjunto de idas e vindas, vôos e recolhimentos, conquistas e despedidas. Portanto, apenas VIVA.